Por Júlio Jader Costa[2]
A Marujada é uma manifestação da cultura e religiosidade popular presente em várias regiões do país. Em que pese a acentuada diversidade que imprime características próprias conforme cada localidade, de um ponto de vista histórico esta manifestação tem origem portuguesa, ou seja, ligada à figura do colonizador.
Destoando da origem europeia, a presença majoritária dos descendentes de africanos escravizados nas Marujadas da atualidade se explica pela centralidade da Festa de Nossa Senhora do Rosário, responsável por inserir a manifestação no universo devocional mais amplo de Reinos e Guardas de Nossa Senhora do Rosário[3], entre os quais podemos citar Catopê, Congado, Caboclinhos e Moçambique.
Portanto, como manifestação tipicamente brasileira, a Festa de Nossa Senhora do Rosário torna permeáveis as fronteiras entre estas manifestações e grupos, especialmente nos contextos pós-abolição. Para o caso de Conceição do Mato Dentro, a hipótese corrente indica que sua realização era atribuição da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e que, em função do definhamento desta organização, a festa foi progressivamente assumido pela comunidade com abertura de espaço para a participação dos brancos em seus reinados anuais, concomitantemente a ampliação do protagonismo da Marujada (Dias:1994).
Quando à pauta da Marujada no território do Mato Dentro, é preciso atentar para o repertório histórico e de oralidade que indica sua ocorrência histórica em distritos mais antigos do que daquela que outrora foi designada Vila da Conceição, recuando no tempo há mais de 300 anos, como nos casos de Córregos e da Tapera, sendo que esta última contou com um grupo ativo até cerca de duas décadas atrás (GESTA-UFMG: 2018).
Outro dado é a existência de grupos ativos capitaneados pelo Sr. Chiquito em Candeias/Parauninha, grupos em ruínas ou já extintos em Tabuleiro e Três Barras. Considerando a questão demográfica, é plausível a hipótese de que a Marujada de Conceição do Mato Dentro tenha se originado no meio rural habitado pela maioria da população, onde galgou enorme vitalidade.
Contudo, o Século XXI trouxe consigo profundas mudanças nos âmbitos social, econômico e cultural. Por todo o globo terrestre pessoas e grupos sociais vivenciaram o efeito destas transformações, com destaque para o avanço tecnológico e os modos de interação rápida e instantânea decorrente da internet e de toda a parafernália digital que inclui aplicativos, redes sociais, etc. Ajustando o foco para a Região do Espinhaço e para os territórios do Mato Dentro, os impactos sobre os modos de ser e vida tradicionais vem sendo acentuados com a implementação de empreendimentos de grande amplitude e larga escala, que aceleram mudanças urbanas, econômicas, sociais, demográficas e culturais na cidade. Fato é que a Marujada não é imune às transformações (Gaeta:2008). Certamente sua vitalidade no meio rural foi progressivamente afetada pela urbanização e pelo deslocamento da população rural para a sede, especialmente dos negros, inaugurando intercâmbios e impulsionando novas configurações da manifestação no novo contexto urbano da cidade.
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Neste horizonte amplo e diverso, no ano de 2001, foi constituído o Estatuto do Grupo Folclórico Marujada de Nossa Senhora do Rosário de Conceição do Mato Dentro, que teve como expoente mais recente José Geraldo da Silva, o saudoso Capitão Tó. Firmando sua territorialidade no bairro Bandeirinhas, este grupo não foi o único a habitar o espaço urbano da cidade, já que há registro histórico de outras lideranças no passado, como os Mutambas e o Zé da Guiomar no Santana. Mas, sendo a única Marujada ativa na sede do município e dada a visibilidade proporcionada por esta localização, o mesmo vinha cumprindo seu calendário religioso no contexto pré-pandêmico, em que pese as dificuldades. Além disso, também marcava presença em eventos culturais e turísticos promovidos pelo poder público.
Imersa no contexto global e local marcado pela fluidez e como manifestação tradicional referida a identidades de grupos sociais específicos, a Marujada de Conceição do Mato Dentro vem enfrentando grandes desafios para dar prosseguimento à sua história, entre as quais merece destaque a necessidade de incorporar ações de cultura digital e protagonismo juvenil em sua agenda formativa visando o repasse dos fundamentos e da memória para as novas gerações. Outro desafio é a inclusão das pautas de gênero resultantes da abertura à participação das mulheres como dançantes.
Para agravar a situação, com a emergência da Pandemia do COVID-19, o baque das ondas virou ao contrário impactando fortemente o Barco dois grupos de Marujada atualmente ativos no munícipio, impondo aos Marujeiros e às suas famílias um quadro de dificuldades econômicas. Além disso, como da restrição dos festejos, comprometendo a periodicidade das apresentações e o calendário constitutivo dos grupos.
Se “sem Marujeiro não existe Marujada”, torna-se
imperativo o investimento em políticas públicas para a promoção e salvaguarda desta
manifestação, ampliando o reconhecimento da mesma como bem cultural imaterial
de grande relevância para o município.
Dias, M. V., EMA CARNEIRO, and JS DUARTE. Mato Dentro: Viagem através dos tempos e contratempos da história de Conceição Belo Horizonte: Dossiê Agência de Investigação Histórica (1994)
Gaeta, Filipe Generoso Brandão Murta O panorama atual da marujada de Conceição do Mato Dentro/MG: uma análise da interferência de agentes externos sobre sua cultura musical tradicional Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Música 2008
Estudo Preliminar: Transformações socioambientais e violações de direitos humanos no contexto do empreendimento Minas Rio em Conceição do Mato Dentro, Alvorada de Minas e Dom Joaquim, Minas Gerais. Publicação do GESTA-UFMG.2018
[1] Trabalho inédito apresentado como subsídio para o Plano de Trabalho do projeto “Centro Cultural Casa do Marujeiro”, em atendimento à demanda da Associação dos Amigos da Marujada de CMD. Permitida a citação, desde que citada a fonte.
[2] Psicossociólogo com formação em psicologia social, antropologia de comunidades, etnoarqueologia colaborativa e Políticas Públicas. Todos os títulos obtidos pela UFMG. Há 20 anos com interesse de pesquisa e prática profissional voltado para a cultura popular e comunidades tradicionais do Espinhaço, já tendo ministrado cursos e participado de publicações (livros, artigos) sobre a temática |
(3] E de outros Santos Pretos, como São Benedito e Santa Efigênia. Importante notar que a centralidade da Festa de Nossa Senhora do Rosário foi ratificada pela abertura do processo e registo da mesma como Bem Imaterial junto ao IEPHA em 2011, visando acessar a estrutura de incentivos do ICMS Cultural de MG. No entanto devido a insuficiência de documentos apontada pelo IEPHA e ausência de complementação por parte da Prefeitura de CMD, o processo estagnou e o munícipio não acessou os recursos para salvaguarda da manifestação(Gaeta, 2008:47-48).